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Para além da vida…

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            Muito se tem falado sobre a eutanásia nestes tempos… É, sem dúvida, um dos temas principais no nosso país não só porque o Parlamento decidiu aprovar, mas também pelo modo como a decidiu aprovar. No meio de uma pandemia com o maior número de mortes a ser registada, a maioria dos nossos 230 deputados enquanto milhares de médicos lutam todos os dias nos hospitais para salvar vidas.

            Contudo, acredito que não me deve caber a mim fazer juízos de valor, acerca de tal desrespeito pela vida humana. Certamente deve existir alguém aí que conheça muito melhor que eu a Lei e o que ela defende para assim poder tomar partido de alguma coisa.

            Por isso, hoje gostaria de falar sobre a vida. Não da vida em geral e do seu valor inviolável, mas sim de uma vida concreta, de uma pessoa concreta. Uma vida que lutou pela vida e dela se privou. Uma pessoa que viveu até ao fim a lutar por aquilo que era o seu bem mais precioso: a vida!

            Os últimos meses de vida do avô Tónio (como sempre o chamei) foram de uma permanente e constante luta entre a vida e a morte. Em pleno início de uma das maiores pandemias do nosso mundo, o meu avô que fazia parte do centro de dia do Lar, viu-se privado de continuar a entrar na instituição devido aos imensos casos positivos que se verificaram. Foi-lhe expressamente recomendado que ficasse em casa e que as refeições lhe iam ser entregues a tempo e horas. Até aí tudo muito bem.

            O problema começou quando este senhor foi testado como positivo ao novo vírus e no dia seguinte não se levantara da cama. O interessante é que as marmitas continuavam a aparecer à porta de casa durante 3 dias seguidos sem que ninguém as pegasse para dentro de casa. O meu avô estava acamado, com 6 refeições à porta de casa e ninguém avisou a família. Na boa fé toda a gente pensou que ele estava a ser acompanhado… Estávamos bem enganados…

            Quando a ambulância aparece à porta de casa dele é que recebemos um telefonema. O senhor António não comia há 3 dias e estava extremamente fraco. Não se mexia. Pior que isso, ele estava infetado e ninguém da família se podia aproximar. Era uma luta só dele. Pedimos insistentemente ao Lar que o aceitasse junto das pessoas infetadas porque senão ele não aguentaria mais tempo. Tal coisa foi negada e ele teve de seguir para a Guarda para ser hospitalizado. Foi difícil ver o caminho feito por ele desde a porta de casa até à ambulância. Apoiado numa bengala com uma mão, a outra sempre encostada à parede e ainda a ajuda preciosa de um bombeiro que não o deixava desamparado. Era assim que ele subia a rua, sem poder mexer as pernas. Que dolorosos 10 minutos…

            Passam 15 dias e todas as informações que chegam de médicos é que o senhor António vinha para casa de perfeita saúde como se nada tivesse passado por ele. A verdade é que ele vem de cadeira de rodas e sem falar. Essa noite foi um autêntico pesadelo. Não sabíamos se ele iria conseguir passar a noite, era tudo menos provável. Tentámos que desse entrada no Lar de Foz Côa, visto que já tinha testado negativo. Mais uma vez as portas foram-nos fechadas. Por três vezes ouvimos um não.

            Amavelmente, o Lar de Cedovim abre as portas a este idoso que de um momento para o outro passa a ser completamente dependente de alguém. Ao longo de 88 anos sempre foi dono de si, fazia a sua caminhada, saía e voltava a entrar em casa pelo seu próprio pé. Nos últimos meses era completamente dependente. Acredito que para ele tenha sido um enorme murro no estômago esta estranha dependência.

            O que é certo, é que depois de tantas voltas, o meu avô fica entregue a um sítio que o ia ver morrer. Mas antes disso ainda tinha de passar por mais um sofrimento. O pulmão do lado esquerdo decide fraquejar e é obrigado a dar entrada mais uma vez no Hospital depois de ter lá estado há um mês atrás. Depois de mais esta aventura, ele fica paralisado numa cadeira de rodas sem autonomia nenhuma para se mexer. No fim, só a morte a 29 de julho fez parar tamanho sofrimento ao longo dos últimos meses…

            Depois de ter passado meio ano, olho para trás e custa-me muito lembrar-me de tudo o que se passou. Lembrar-me que a última vez que vi o meu avô, ele não se conseguia mexer e só reconhecia a minha voz. Aquele senhor que me abraçava e me mostrava um sorriso sempre que me via, deixou-me sem um sorriso de orelha a orelha nem um abraço que apertava o coração.

            Por isso, quando me falam em eutanásia, ou se é lícito ou não pedir a morte antecipada, lembro-me do meu avô. Lembro-me dele porque por mais difícil que tenha sido a luta, ele tentou ao máximo agarrar a vida com todas as suas poucas forças. Quis abraçar a vida ao máximo, acabando depois de a abraçar na plenitude.

            Hoje deixa uma saudade. Mas também deixa o exemplo de uma pessoa que agarrou a vida ao máximo e que demonstrou que, apesar de qualquer dor, a vida é o bem mais precioso que temos. Obrigado, avô.


João Patrício

Ficámos sem o Natal!: Sobre
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